31/01/2010

África - um projeto de HQ

Algumas coisas na vida vêm como um soco na cara. Idéias que se formam com um estouro, e após um breve momento de intenso envolvimento, tomam a mente por inteiro. Qualquer idéia que se queira por no lugar acaba por levar de volta àquela, em não mais que dois ou três saltos. Tudo a sua volta parece gritar a mesma coisa. Naturalmente, costuma se tratar de algo que contradiz a rotina, a apatia mecânica. Do fundo da garganta, a idéia parece gritar, a cada fração de segundo, pela mudança, pela ação, em resposta à reconfortante inércia do cotidiano. No momento, me parece que é mudar ou enlouquecer.

E que em tempos tão modernos, vivam homens tão à margem da civilização, que são quase bichos. Um mundo em que uma criança de cinco anos tem maior capacidade de comunicar-se que um homem adulto do outro lado do mundo. Como aceitar tamanha exclusão? Como continuar buscando cegamente, e a toda velocidade, o dito progresso, se esse não é para todos?


---

Todo ano os homens da tribo saíam numa grande expedição de caça. Caminhavam grandes distâncias, dando a volta por um desfiladeiro, até alcançar o ponto onde era possível atravessar o rio. No caminho, os homens cantavam e conversavam, e riam entre si, num passo lento e relaxado. Depois da temporada de caça, os homens voltavam pelo mesmo caminho. E caminhando sem pressa cantavam e riam ainda mais, porque a caça tinha sido boa, e logo veriam novamente as mulheres e os filhos, e dormiriam tranqüilos e em segurança. A viagem toda levava trinta dias e trinta noites, ano após ano.
E se diz que certa vez um engenheiro inglês, que trazia no rosto o mesmo sorriso com o qual você me conta de seus planos, passou um tempo na tribo, buscando uma maneira de utilizar seus conhecimentos modernos para melhorar a vida daquelas pessoas. Quando contaram-lhe da expedição, achou que tinha encontrado a oportunidade perfeita. Mostrou ao chefe da tribo que era possível construir uma ponte por cima do desfiladeiro, facilitando a travessia do rio. Com a tal ponte, a viagem inteira poderia ser feita num total de sete dias. O chefe refletiu por alguns segundos, e um pouco confuso pergunt-- Acho que é o seu trem.

O que foi que ele disse?

---

E eu sei, como sabe uma enciclopédia, que as células da árvore se multiplicam por mitose, e que as chuvas são causadas pelas diferenças de pressão e temperatura na atmosfera. Ele sabe que uma semente vira árvore, e sabe que chove.


Com que palavras será que pensa? Quais suas conclusões? Como pode chegar a alguma conclusão sem palavras? Talvez não busque desfecho algum a suas reflexões. Talvez. Parece tão calmo. Como se não sentisse a chuva. Mas está claro que pensa, como penso eu. Como eu? Às vezes me toma a idéia de que é ele que pensa, enquanto eu me demoro a juntar palavras, a tirar sentidos e elaborar conclusões coerentes. E quando abre os olhos e me olha, como pode ser tão honesto? São os olhos de alguém que vê outro alguém sem se preocupar em buscar os adjetivos corretos. É tão claro, tão fácil, tão natural. E sorri, como se soubesse que não lhe quero mal, e isso lhe basta.



Que as letras não fazem o homem. Que talvez, o homem já se tenha esquecido do que é que lhe faz homem, hipnotizado pela sombra de suas maravilhosas criações. Esquece-se que o que cria não faz parte de si, faz parte do todo, como fez a lança, a flecha, a roda e a música. Já não são do homem, são do mundo. O que há de realmente incrível num homem de letras, num homem de números, é algo que já quase não se nota. Se acredita que tais feitos intelectuais sejam de certo modo superiores a outras habilidades não tão respeitadas, quando, no fundo, a mesma coisa que me faz somar números, permite ao selvagem superar a onça. Que a sobrevivência do homem é tão impressionante numa metrópole moderna quanto nas planícies africanas. Que a civilização pode ter-se construído sobre a língua e sobre certos códigos morais, mas que o homem já era homem antes de qualquer dos dois. E que não cabe a mim trazer minhas ilusões modernas a esse homem; em verdade acabaria por tomar mais do que daria. Talvez descobrisse o que é que me faz homem, algo que ele nunca chegou a esquecer, mesmo sem nunca ter sabido.

---

E se diz que certa vez um engenheiro inglês passou um tempo na tribo. Quando contaram-lhe da expedição, mostrou ao chefe da tribo que era possível construir uma ponte por cima do desfiladeiro, facilitando a travessia do rio. Com a tal ponte, a viagem inteira poderia ser feita num total de sete dias. O chefe refletiu por alguns segundos, e um pouco confuso perguntou 'E o que é que a gente faria com o os outros dias todos?'
E naquele ano o engenheiro acompanhou os homens durante a temporada de caça. E por trinta dias e trinta noites caminhou e sorriu e cantou. E ao chegar na tribo todos dançaram e beberam, e o inglês, embriagado, entendeu uma coisa importante, e dormiu tranqüilo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário