31/01/2010

PianoCubista

Os cômodos lhe eram imensos e incompreensíveis, e os móveis antigos lançavam, com as últimas luzes do dia, longas sombras no chão de madeira, que davam à vida, por alguns instantes, uma certa idéia de eternidade. Logo descobriu que a casa era – ou podia ser, se assim o quisesse – a morada de todos os sonhos possíveis. E, de fato, assim o quis por muito tempo.

Habitavam as chaminés um sem número de seres multiformes, cuja natureza variava incessantemente, não apenas de um para o outro, mas também de hoje para amanhã.


Durante os primeiros anos não freqüentou a escola, por decisão de sua tia – que passava os dias, desde a morte de seu marido, a ler e escrever, sempre em cantos diferentes da casa ou do grande terreno. Não escaparia à atenção do infante, tão meticulosa quanto aleatória, a excentricidade dos incontáveis episódios envolvendo essa única figura adulta – também único exemplo humano – do seu cotidiano. Não que crianças se incomodem com excentricidades, ou sequer que as chamem assim, uma vez que as palavras costumam vir com o tempo; mas houve, desde sempre, uma relação de mútua curiosidade entre os dois habitantes da casa. Cada qual tão interessado em seus próprios devaneios quanto nos do outro. É bem capaz que a relação de igualdade que se formou naquele refúgio bucólico tenha sido o primeiro acorde da extravagante sinfonia que viria a ser sua vida: e como primeiro, foi também o que lhe deu o tom.

Certa vez, deu de procurar por buracos de luz. A chaleira lhe havia dado indicações muito precisas, que acompanhadas de um mapa, invisível a quem não o quisesse ver, acabaram por levar-lhe ao armário debaixo da escada. Munido de um guarda-chuva verde limão que, como qualquer outra coisa, podia muito bem ter poderes mágicos, e com toda a cautela e sutilidade de que é capaz uma criança de uns tantos anos, abriu a porta, pouco maior que ele mesmo. Sem espanto, deu de cara com a tia, que lia à luz de uma lanterna um livro, a julgar pelo estado da capa, declaradamente velho. Contou-lhe de sua empreitada, e ela prometeu mostrar-lhe os buracos de luz. “Mas só quando estiverem com visibilidade perfeita.” explicou.
O menino perguntou o que lia, e já preparado ouviu-a recitar três estrofes, meio lidas meio decoradas – e, suspeitava, meio inventadas. Perdeu-se em palavras tão impressionantes quanto lhe eram compridas e complexas. Indagou por fim o que queriam dizer, ao que a tia respondeu que, no fundo, não queriam dizer nada. Fechado o livro, aprendeu, maravilhado, que a lanterna era de dupla utilidade: iluminava, para que se pudesse ler, e também impedia que o crocodilo, habitante daquele armário, viesse incomodar o leitor. Desprendeu da conversa o valioso conselho de que a lanterna era um item essencial para qualquer explorador precavido. Insistiu para que pudesse ficar com ela, e a tia consentiu.
A aquisição trouxe novos horizontes às suas peripécias, e, como toda criança que se depara com um repentino leque de possibilidades, pôs-se logo a traçar seus planos para um futuro recém descoberto. Sua primeira campanha teria como objetivo a minuciosa investigação de todos os enigmas, até então insolucionáveis, gerados pela escuridão, que, numa casa tão antiga, eram muitos – era até capaz que fossem infinitos, pensou, experimentando. Por um momento condenou sua missão ao fatídico destino das cruzadas impossíveis, mas a solução do impasse logo se fez clara. Fossem os enigmas, de fato, sem fim, a única linha de ação possível seria, evidentemente, responder ao infinito com outra infinidade. Infinidade essa que o intrigava já há algum tempo: passaria a tarefa a seus filhos, que transmitiriam o fardo a seus netos, e assim até o fim dos tempos – ou, como lhe pareceu mais interessante naquele momento, por toda a eternidade.
Perguntou, a ninguém em particular, se não seria inútil responder com fogo ao próprio fogo. Infinitos enigmas, a serem solucionados pelas infinitas gerações futuras; um empate; pior ainda, um empate que permaneceria em aberto por toda a eternidade, que já não lhe parecia mais tão interessante. Qual o sentido de uma tarefa, que não traz consigo a esperança de sua conclusão? Respondeu, também ao interlocutor indefinido, que era precisamente aí que estava seu grande trunfo: tornaria tradição que todos os seus herdeiros tivessem, no mínimo, dois filhos cada um, de forma que a família de investigadores não só seria infinita como o tempo, mas também seus números, a cada geração, cresceriam infinitamente. Os enigmas, por sua vez, representariam apenas o infinito constante. Essa linha de raciocínio lhe garantia uma vantagem de dois contra um.

Não se esqueceria dos largos degraus que levavam ao segundo andar, ou do crocodilo debaixo da escada.


Não foi sem uma certa melancolia que constatou que a chaminé era apenas uma chaminé. Inabitada. E que crocodilo nenhum morava debaixo da escada – ou, concedeu, se algum dia houve crocodilo, este já havia se mudado dali há algum tempo. A chaleira também não quis estender a conversa. Limitou-se a assobiar em cima do fogo, até que dela se fizesse o chá, e então calou.
Sabia, talvez não com palavras, que a casa, tal qual era durante os anos da infância, com todos os seus habitantes de sonhos, e todos os sonhos de seus habitantes, não havia cessado de existir, mas se transformado em cores, versos e melodias. Mas sabê-lo não tirava de seu peito – ou da parte de sua consciência que acreditava ser seu peito – o vazio que deixa o tempo, enquanto passa indiferente. Por um momento cogitou a possibilidade de trocar todos os seus versos, todas as melodias e harmonias, e todas as cores de todos os quadros que pintara, pela infância perdida, e seus olhos quiseram chorar. Entendeu por fim que a troca, além de inconcebível, era também insensata,

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