06/04/2010

Um dia, o dia e minhas memórias coloridas

Hoje acho que abandonei meu trabalho por questões de opinião poética. Segue um relato desmembrado de um dia, a mim, muito pouco didático. Quem sabe acho um retrato mais entendível dessa obra antropofágica cotidiana que foram as minhas reflexões recentes.

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Até aprecio o resultado, mas não me dedicaria a ele. Não concordo com o meio, e seus inevitáveis desdobramentos simbólicos e sociais. Vejo, como em quase todas as outras coisas, mudanças a serem feitas, falhas óbvias a serem corrigidas. E sinto a garganta aberta silenciar no vácuo dos ouvidos que mais gostaria de atingir.
Que esperar de um século que depende dessas produções megalomaníacas distribuídas em massa pra controlar seus espectadores? Mais que isso, mantê-los nessa condição de espectadores. Deus nos livre se quiserem de fato atuar. É fundamental impressionar. Precisamos de mais luzes, mais maquiagem, mais efeitos especiais. Só se faz dessa grandeza com uma hierarquia rígida, peças altamente afinadas, e um cérebro condutor, ao redor do qual tudo gira, e do qual se tira toda a arte, a visão, a idéia. É só assim que dá. Não é? É, há de ser. Houvesse outro jeito, já teria sido feito.

Mas não são humanas também essas peças?
Que importa, há de se alcançar a arte.
E não fazem arte também as peças avulsas?
Acho que até fazem, mas quem é que compra idéias tão diminutas?

Tudo corre em volta de um só. Esse pira, e passa a crer que tudo corre de fato em volta dele.

Escrevi uns versos olha.
Vê, não quero isso. Há de fazer algo pra mim.
E se não há o que fazer?
Tira então da minha cabeça, acha algo. Não te pago?
Paga, mas não vim pelo dinheiro.
Não é o caso, há muito o que fazer.

E até há mesmo. Sacrifica tua idéia, pega a minha que há espaço no mercado. Faz pressão, fica em cima, abaixa a bola e espera a tua hora. Ela vem não te preocupes. Afinal um dia eu morro não? Ademais, outras máquinas precisam ser controladas. Sua idéia vale ouro, quando se tem os contatos adequados. Outros pontos tornam-se o centro de novas espirais giratórias nesse fantástico mundo da produção artística oficial. Terás vários a seu serviço, centenas, milhares, milhões aos seus pés.

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Para para para. Te digo. Tens um monstro humano-composto sob seu controle, ou ao menos sob sua supervisão. Um conjunto de pecinhas que trabalham pela tua idéia. São bem pagos não se pode negar, e há quem diga que a maioria nem queria estar no teu lugar. Acredito nisso, e é bem o que me faz querer olhar prum outro lado, buscar um outro mundo, noutras pessoas talvez. Meu mundo é o das pecinhas que criam o que inevitavelmente cria uma peça qualquer. Minha peça, antes de impor idéias, absorve-as, em sua multiplicidade esquizofrênica, e tenta desesperadamente consolidá-las num projeto maior. Projeto que não nasce de mim, mas acontece inevitável, e meu papel de condutor, juntador, catador, colador, é tal e qual o dum consciente observador-atuante, que admirado deixa o mundo lhe levar, respondendo àquilo que convém, alterando as minúcias que lhe chegam às mãos, num processo incontrolável, incadescente, altamente instável - maravilhoso. Arte por natureza.

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São moleques, garotas, meninos, jovens, colegiais, vestibulandos, enganados, cercados, controlados e iludidos. Riem, falam, entendem, desentendem, se colocam, se indefinem - pensando, se me permitem a citação, em pensar quando o tempo parar de passar. As idéias são boas, não nego, mas de boas passam também desapercebidas. Ruins e vagas a seus próprios intérpretes. As idéias são idéias, e só isso enquanto tal. E na frente uma figura que lhes diz que não, não é bem assim, existe um meio certo, um método consolidado, existe uma indústria e existe um mercado.

Que tal uma cena-
O prazo!
E uma câmera-
A falta de recursos!
A música bem que podia-
Não viaja!

Pouco a pouco um tal dum mundo real cai sobre as costas das crianças sem aviso algum. Não há choque. Em verdade, no desaviso pós-moderno, que a todo momento nos mostra tudo e a tudo nos nega, ele já vinha sendo anunciado há tempos. Dos livros se deduz o amor, dos filmes a violência, a velocidade e as mentiras. Da internet se baixa todos os livros e filmes, resumidos, mastigados e interpretados por um sem número de aventureiros modernosos.

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Que lhes passa pela cabeça? Vão ou vêm? Ficam, por anos a fio talvez? Engraçado pensar quantos anos já fazem. Tantos mais, alguns a menos. Quantos foram mesmo? Quão igual e diferente fica a vida, enquanto, durante e depois de vivida. Né?

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Enfim um bom exemplo,
calha bem num mesmo dia.

Há de ver melhores versos?
Há mais fina melodia?
Aqui sim se faz a arte,
aqui sim há poesia.

Já repito os mesmos verbos, em cada três de quatro versos. Vou fugir da arte minha, falar da banda que tocou. São de fato muito bons. Bem no tempo, e bem o que?

Perde o fio em meia frase,
perde a vida em tempo frio.

Passam horas e amores
-
falar nisso por onde é que anda o teu?

A banda era boa.
Veio, foi e nem te olhou.
Acho que uma hora ela me viu,
entre as notas que cantava,
acho sim, até sorriu.

Pensou que talvez
sorrisse só porque cantava?


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São de fato muito bons não são? E a quem pergunto já não sei. Como sempre estou sozinho. A banda vai, outra talvez venha. Como sempre dizem tanto, tocam tanto, emocionam de chorar. Mas uma coisa não se pode evitar: palco é palco, um andar acima. Iluminados, maquiados, e te cantam como cantaria um velho amigo. Olha que a honestidade desses é até meio exemplar, mas não dá pra não lembrar, que a todo tempo estão eles lá. Eles tão lá em cima e eu aqui.

Fim do show se vai embora, e por segundo fica uma saudade de tanto tempo não se ver. É fato, o mundo vai e vem, e lá em cima ou não eles sorriem. Quem sou eu pra julgar felicidade?

Mas não, também não é essa a arte que eu quero.

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Me vem agora uma conclusão plausível. Por mais óbvia e idiota, mais inútil de se voltar a falar, repetir e martelar num vácuo-ouvido-próprio que de fato parece não querer escutar. A arte que eu busco não é arte. Em verdade é sim. É arte, mas não é, e nem por isso deixa de ser. É amor.

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Me parece pouco importante esse adendo, mas afinal do que é que eu entendo? Escrevi a porra toda ao som de Miles Davis & John Coltrane - Konserthset, Stockholm, March, 22, 1960. E como o festival de mentiras bem contadas, É Tudo Verdade.

Um comentário:

  1. É, essa idéia da arte, bem, eu acho que talvez seja mais uma loucura.

    A arte que eu quero é aquela que não precisa ser arte para ser.

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