16/07/2010

Landmark - Uma Pausa em Pedaços

Evitei até aqui a linguagem pessoal, cotidiana dos blogs. Evitei confissões, balanços, prestações de contas para comigo mesmo. Imaginava que em algum momento isso viria, mas não forcei. Quis ter algo palpável, antes de jogar aos leões os meus cacos. Quis ver o outro lado, antes de escrever o epitáfio de um eu. Não sei se sobra aqui algo de compreensível. Acho que finalmente escrevo algo não necessariamente sobre mim, mas para mim. Talvez em breve consiga escrever algo para o mundo.
Estando finalmente aqui, não vou negar-me esperança alguma. Espero estar queimando algumas pontes atrás de mim.


A verdade é que tenho me dedicado e me perdido já há muito tempo em filosofias e significados, em entendimentos do mundo que não me apareciam em nenhuma das disciplinas que me eram oferecidas no grande menu da academia. Em tudo havia distrações e complicações que julgava serem desnecessárias. Correndo o risco de soar um tanto convencido, conseguia extrair das aulas pequenas peças fundamentais, em meio aos mares de conteúdo inútil, de distrações, e de fato montar meu próprio entendimento. Meus colegas me pareciam perder-se por caminhos bizarros, construídos sobre plantas deturpadas pelos traumas do colégio, com as pedras fornecidas pela tal academia, insuportavelmente infladas por seu próprio senso de importância.

Eu sei, parece arrogante. Nada além de usar palavras bonitas para falar das dificuldades alheias. Mas que eu não me engane, essa arrogância já me incomodava na ocasião. Em verdade, sempre me incomodou, e por isso eu sempre deixei muita coisa sem dizer. Desde a escola, quando me elogiavam a inteligência, me vinha uma vergonha absoluta por sentir que não era mérito meu. Que era tudo, em verdade, muito mais fácil do que as pessoas imaginavam. Elas só estavam olhando pelo lado errado. Tinha um caminho muito mais simples, um entendimento muito mais intuitivo sobre todas as coisas do mundo, que não estava nos livros nem nas aulas, mas na observação do próprio conhecimento.

Mas como dizer que esse entendimento, essa simplificação, depende da aplicação de todas as matérias, de todas as lógicas e de todos os significados uns sobre os outros? Que a maior barreira que eu vejo no entendimento do mundo pelos homens se dá na fragmentação de seu próprio saber. Na recusa de entender que todos os nossos sistemas de compreensão são apenas isso, sistemas lógicos. Mesmo as tais ciências humanas são nada além de jogos racionais sobre símbolos encontrados e consolidados pelo homem. Como dizer que deveriamos estar olhando para as formas do próprio saber, e não para o seu conteúdo? É como dizer "Isso aqui é muito simples, basta que você saiba todo o resto, que esse pedaço praticamente se deduz sozinho". Como não soar completamente maluco?

Para aquele garoto de - quantos anos? Quando foi que isso começou? - enfim, para aquele garoto isso era impossível. Faltavam-lhe as palavras. Faltava talvez um pouco de coragem. A força de vontade para superar o receio de soar arrogante. Sempre um ano mais novo que todos a minha volta, quem era eu pra dizer-lhes como pensar?

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Quando, saído da física, quis dar meus primeiros passos rumo a uma tal arte, contei a meu pai sobre algumas das coisas que me passavam pela cabeça, a respeito do mundo, dos homens, e das relações entre as pessoas. Pouco tempo de conversa, sem conseguir convencê-lo de fato de nada, ele diz: "É, acho que não existe meio de realmente dizer o que você quer dizer, que não através da arte". Não dá pra dizer que não foi um pouco decepcionante. Falava do mundo com tamanha convicção, tinha tanta certeza de que minhas idéias eram claras como a água, que esperava que ao menos meu pai pudesse ver ali todo o tamanho que eu queria enxergar. Descobriria logo que essa seria só uma primeira experiência de frustração, frente às dificuldades de se fazer entender ao mundo e aos outros. Por outro lado foi também um aval, distante e categórico, como havia de ser vindo de meu pai, mas ainda assim um aval. Um sinal verde, um indício de que estaria enfim nalgum caminho.

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Ano passado mergulhei de cabeça no que tinha, em pensamento, como arte. Escrevi meu primeiro poema, que viria a ser um guia interessante durante muito tempo, talvez até hoje. Desenvolveram-se em minha cabeça e em alguns rascunhos, de uma forma curiosamente expontânea, as formas gerais de uma história em quadrinhos, que, acreditava, seria meu primeiro feito artístico. Os personagens e as tramas, entretanto, a medida que se desenvolviam, pareciam-me importantes demais. Revelavam-me, sem palavras, uma aura de sentido que eu não sabia explicar.

Mergulhei-me, paralelamente ao mundo dessa história, num mundo de filosofia, de observação, que extraía do meu tímido e distante convívio com meus amigos. Aquela mensagem para a qual me faltavam palavras, nos tempos de escola, agora me tomava como veículo de sua exploração, e eu procurava no mundo e nas pessoas os sinais que me levariam ao meu grande desfecho. À revelação de minhas teorias, de minha arte, de minhas palavras finais. As teorias, e os personagens da história me iam aparecendo. Fragmentos, diálogos, alguns desenhos soltos.

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Saindo de uma peça fantástica, minha cabeça voava alto, como se tivesse encontrado altitudes inéditas, em céus que já acreditava mapeados. Disse pra uma amiga, na ocasião, "Acho que vou ter que fazer teatro". E antes mesmo de terminar a frase já me sentia um pouco ridículo. Eu nunca fiz teatro, e em verdade eu nem tenho o costume de ir ao teatro. Mas fazia já algum tempo que eu mergulhava em mim mesmo, numa busca tortuosa por uma coisa que eu chamava de arte, e de concreto, palpável, nada. E aquelas pessoas estavam lá, cantando daquela realidade lisérgica e surreal, uma arte que existia fora de qualquer cabeça. Uma arte que existia, e apenas podia existir assim, no contato, na performance, em sua própria exteriorização.

Como tantas idéias, juntou-se ao turbilhão artístico-emocional, e só. "Acho que vou ter que fazer teatro".

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Conforme aumentava a complexidade de meus devaneios, mais difícil se tornava a convivência com as pessoas a minha volta. Ao fim do ano, encontrava-me num estado deplorável. Nada parecia encaixar-se, e havia me distanciado tanto do mundo, que me sentia, às vezes, eternamente perdido. Como que tornado complicado demais.

Descobri, em algum momento, a verdade maior de toda a minha produção. Esse desenho foi um sinal interessante. Havia me perdido na busca de metafóras e de sentidos, mas o mergulho havia sido pra dentro. Não havia o mundo a ser entendido, mas o mundo sendo usado para entender-me. Todos os meus desenhos, todas as minhas teorias, todas as minhas histórias e personagens, formavam um mapa fragmentado de minha mente, e nada mais.

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Por um tempo achei que eu mesmo havia enfiado-me nesse mundo, e criado minhas próprias prisões, cavado meu próprio buraco. Hoje a interpretação é outra. O isolamento, a distância, a angústia na relação com as pessoas, já me eram presentes há muito tempo. Arrisco dizer desde a quinta série, quando mudei de escola, junto de vários amigos da infância, e os vi mudar drásticamente, frente ao mundo das máscaras do convívio social. Assim como o incômodo sem palavras relacionado ao entendimento do mundo, essa perda do mundo da infância, já naquela época, me causava um incômodo, uma angústia, que eu nunca soube expressar.

Nessa época criei meu primeiro personagem, para um jogo de RPG, chamava-se Nightwind.Um ser de sombras, que usava uma máscara negra. Não se viam seus olhos. Até então não me lembro de ter sido uma criança particularmente interessada pelos personagens sombrios. E esse personagem, já em sua criação, me parecia assustadoramente importante. Como que simbolizasse algo muito maior do que qualquer palavra que eu pudesse proferir. A máscara negra, imagino, já anunciava minha inevitável máscara social, que, pautada pela própria resistência de sua consolidação, seria forjada em volta da indiferença, da distância, do não envolvimento.

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As barreiras eram reais. Meu processo artístico voltava-se pra dentro, afim de quebrar, em mim, as barreiras que eu tanto condenava no mundo a minha volta.

Dado o diagnóstico, que fazer? Precisava urgentemente reatar-me com o mundo.

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Em duas ocasiões senti muito fortemente o presente. Ambas em festas muito parecidas, na nostálgica Campo Grande, a casa abandonada de um amigo meu, palco de muitas de minhas reflexões. A música sendo criada ali, na hora, me trazia um êxtase inexplicável. Não se tratava apenas de música ao vivo, mas músicos que nem se conheciam direito, tocando pela primeira vez e criando um universo inconstante de tensão e repouso, de movimento, de ritmo, de respostas e pulsações inéditas.

Os significados disso tudo eram tantos, que a primeira dessas festas foi quase que totalmente apagada de minha memória. Esse fato pode soar como algo banal para muitos, mas não é algo que costuma me acontecer. Mesmo regada a álcool e drogas, minha mente ávida recusa-se a se deixar levar, a tudo observando e registrando, eternamente teorizando. Nesse dia, a música me mostrou o presente.

Na outra festa, também a música tomou-me, mas dessa vez a consciência, com um empurrão do LSD, em vez de perder-se no esquecimento, desdobrou-se sobre si mesma, e explodiu em um êxtase físico-filosófico que até hoje ainda rende muitos frutos. Não cabe aqui elaborar os pensamentos da ocasião, mas vale colocar dois pontos que marcaram as conclusões gerais da noite.

Sentado num canto da sala de música, timidamente bati num tambor, durante uma das músicas. A música em si, que já me causava admiração, revelou uma face que eu ainda desconhecia. Pela primeira vez na vida entendia o significado real do ritmo, da pulsação, da música como linguagem e conexão entre as pessoas. Passei boa parte da noite batucando. Talvez isso tenha me ajudado a manter as lembranças. Da outra vez, a música havia me mostrado o presente. Dessa, o tambor me lembrava, a cada batida, de estar de fato no presente.

O símbolo maior talvez seja o fato de ambas terem sido festas a fantasia. As fantasias alheias me mostravam, pela primeira vez, as palavras que me faltavam à análise das relações humanas. As máscaras, as personagens, as linhas de força da narrativa. Mais do que isso, penso que minha própria fantasia, o pirata em ambos os casos, talvez tenha sido a fonte maior de meus prazeres. Pela primeira vez em muito tempo eu tinha um personagem, que não aquele tímido e distante pensador no qual eu havia me deixado transformar.

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Mas de conclusões não se vencem barreiras. Da fantasia, não se tira uma nova personalidade. Acreditei que teria sido suficiente a mera conclusão de tudo que pensara, e me deixei, novamente, vasculhar a tal da arte, curioso de saber o que ela viria a dizer, agora que eu havia descoberto o presente, e meu próprio eu nele inserido. Em pouco tempo meus pensamentos me engoliram. Descobri que a relação com aqueles velhos amigos continuava difícil, os significados, e minha própria máscara, ainda pesavam demais. Acreditava que tinha novas coisas a dizer, mas logo percebi que ainda me faltava o contexto.

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Como que num loop sarcástico da minha própria mente, meu distanciamento me fez voltar novamente minhas esperanças ao mundo acadêmico. Uma nova faculdade. Ah, a área de humanas. Talvez agora, munido de todo um ano de desenvolvimento artístico e pessoal eu encontrasse o contexto para me deixar atuar na realidade, e não mais em minha cabeça. Mas esse filme eu já havia visto, e me deparei de novo com aquela realidade que no ano anterior havia descartado em dois meses. Não sei porque demorei tanto dessa vez para abandonar . Acho que o medo de não ter de fato construído nada para colocar no lugar, de cair de novo no mar de meus próprios símbolos, de meus próprios dramas.

Mas não, não era esse convívio humano que eu queria. Não queria lidar com aquele contexto de intrigas não declaradas, de olhares disfarçados para o outro lado. De máscaras e de falsos cumprimentos.

A certeza de que o maior problema do mundo está na relação entre as pessoas me havia levado à História. Mas acho que própria distância histórica, acadêmica, intelectual, que seja, impede qualquer disciplina formal de lidar com isso que me incomoda.

Meu maior erro talvez tenha sido condenar as pessoas a minha volta por se deixarem viver nessa confusão desconfortável de significados humanos. Essa é a vida, e as pessoas, diferente de mim, estavam simplesmente aceitando vivê-la. O que me fica claro agora, é que as pessoas vivem as barreiras e as máscaras, pois acreditam naquilo que fazem, acreditam no conteúdo que buscam. Seja a História, seja a Física, a faculdade é o fator concreto que lhes dá lastro, e que me tem feito tanta falta.

O que também fica claro, é que o que quer que eu tome como meu norte precisa, antes de tudo, recusar-se a aceitar as barreiras, ou ao menos propor-se a estudá-las e forçá-las. Assim como minha arte me fez mergulhar em mim, para iluminar os pontos escuros de meu mapa, não estarei confortável em um contexto que não queira lidar com seus próprios demônios.

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Li Boal. Tenho lido Brecth. Mas agora encontrei Kantor, e entendi finalmente que eu não sou maluco, nem estou fazendo nada inédito. Entendi também que não tenho explorado um mundo imaginário, mas um mundo tão real quanto o nosso. O que me falta é o espaço para torná-lo material. Durante as noites tenho voltado a sonhar. E nesse exato momento sinto o gosto da cerveja em minha boca como há muito não sentia.

"Acho que vou ter que fazer teatro"

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A tirinha é do Laerte, e a mim mistura
Pink Floyd e Boal de forma maravilhosa.
O Blog dele ta aqui.
Altamente recomendável.

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