Durante a semana que passou, desde terça-feira até esse domingo, participei de um ciclo de palestras sobre Tadeusz Kantor, artista polonês. Digo artista, pois apesar de ter ficado famoso por suas peças, foi muito mais que dramaturgo. Acredito que foi, acima de tudo, um grande explorador. Não é meu intuito aqui discorrer sobre sua obra, mas falar da assombrosa sensação que vem se construindo em mim desde que tive contato com Kantor pela primeira vez.
Encontro-o num momento de minha vida em que busco reconciliar as terras inquietas de minha cabeça, com o mundo material, com a vida. E há pouco tempo descobri no teatro a ferramenta maravilhosa que talvez me permita tal salto. Li um pouco de Brecth, Boal, e engolí-os com gosto. Mas Kantor apareceu de repente, e aos poucos foi se construindo a minha frente como um espelho histórico de semelhança assustadora. Não quero aqui colocar-me, em grandeza, ou mesmo em potencial, nas alturas alcançadas pelo artista. Mas queria registrar alguns pontos que me fizeram, ao longo da semana, cultivar a duvidosa suspeita de nosso parentesco filosófico.
A primeira coisa que me chamou atenção foram os desenhos. A idéia, que já me é comum há um bom tempo, de entender os desenhos como forma de se pensar, como forma de entender a própria mente. Kantor observa em suas telas e em seus rascunhos, as próprias bases de sua filosofia. Explora os espaços e os seres humanos enquanto matéria, e suas relações com o mundo e com si mesmos, e para isso volta-se para as formas da própria arte. A arte como espelho da mente, que inevitavelmente é espelho das características de nosso próprio universo. A idéia, talvez, de que nosso sistema é fechado, e que, como tal, tudo que há é passível de se assumir como símbolo de todas as outras coisas. É a busca do todo na parte, e da parte na explicação do todo. E nisso, encontro muito do que fiz durante boa parte dos últimos dois anos. A busca, na forma musical, na literatura, e nos meus próprios desenhos, pelos vislumbres esporádicos da própria lógica de nosso universo.
A segunda característica que quero colocar aqui está no caráter temático de sua última fase de produção. No fim de sua vida, Kantor volta-se ao que é chamado de Teatro da Memória. Explora as regiões da memória enquanto ambiente concreto, colocando-as em pé de igualdade com a realidade. Mais que isso, lida com a dificuldade de se lidar com a memória. Nesse aspecto, acredito que tenha antecipado com muita sensibilidade, a crise maior do século XX, e do próprio pós-modernismo, que nos é tão presente nos dias de hoje. Eu, já há algum tempo, havia chegado, através de uma história em quadrinhos, em crise semelhante, além de já ter dado ao tema da memória grande importância em várias de minhas ponderações. Pretendo explorar mais a fundo esse ponto. As coisas ainda estão muito frescas na cabeça, muito inconstantes.
Em sua penúltima peça, "Aqui Não Volto Mais", e aqui minha identificação começou a tomar proporções realmente assustadoras, Kantor, ainda no tema da memória, se encontra na Estalagem da Memória, aonde encontra personagens, objetos e situações de diversas peças de sua carreira. Aqui, mostra a dificuldade do indivíduo, do criador, de lidar com seus símbolos e personagens do passado. A confusão criativa, a impossibilidade de se alcançar a coerência, em meio ao caos de personagens, personalidades, vontades e tensões absurdamente dissonantes. O homem velho, sentado à mesa da Estalagem da Memória, lida com o peso de seu próprio passado.
Minha primeira história, que me veio no início do ano passado, começa com um autor, também incapaz de lidar com as infinitas idéias e personagens que deixou pelo caminho. Cria uma personagem, Alice, com a qual pretende, estando ele também presente como personagem, vagar por suas terras da imaginação, a juntar e tentar entender seus próprios fragmentos de histórias e referências. Já na questão do protagonista, me encontro novamente com Kantor. Kantor sempre esteve presente no palco, em todas as suas peças, como diretor. E em suas últimas produções, entra também como personagem. Ele, o próprio. E em minha história, o autor-personagem sou eu.
Alguns fatores a se notar: aqui o autor não é velho, e a dificuldade não é posterior à jornada, mas justamente de começá-la. Outro, e isso me parece ser de extrema importância, a idéia do autor e das linhas gerais do enredo veio antes de qualquer personagem. Ou seja, esse autor perdido em sua cabeça, quando surge, não tem, de fato, nada que realmente justifique essa sua angústia. Não haviam os personagens que supostamente o atormentavam, mas existia a tormenta. Me parece representar, talvez, a sina do século XXI. Já nascer com um peso que lhe é confiado pelo século XX, como se esse tivesse criado algo de tamanho valor, que a tarefa daquele no mundo há de ser eternamente a de tentar entendê-lo. Carregar o peso de símbolos e personagens que o impedem tanto de prosseguir, quanto de começar de novo, sem saber que, no fundo, esse peso não é seu, que muitas vezes ele nem existe.
Kantor, muito sabiamente, termina Aqui Não Volto Mais com a morte de seus personagens, e não com a atitude narcisista de jogá-los, em suas contradições incontroláveis, às próximas gerações.
O último dia de palestra me foi o mais interessante. A última peça de Kantor ainda trata da memória. O título, "Hoje é Meu Aniversário". E aqui as coisas ficaram ainda mais macabras. Já havia me identificado com Kantor, mais do que me identificara com muitas das pessoas reais que conheço. Tem algo em mim que valoriza muito as figuras que podem me ensinar coisas, que me fornecem meios, ferramentas e símbolos para concretizar meus raciocínios. Estejam elas vivas ou mortas. Então já entrava, a cada dia, procurando pelos pontos de encontro mais evidentes. Vou tentar ser direto, sem criar nenhum suspense. Não quero soar como se estivesse procurando por isso, mas foi o que encontrei.
"Hoje é Meu Aniversário" lida, como muitas peças de Kantor, com a morte. Mais do qualquer aniversário, as figuras de sua vida vêm ao palco, de certa forma, em marcha fúnebre, num retrato inconstante de sua vida, como que executassem seu funeral. Num dos últimos dia de ensaio, Kantor sentiu-se mal, e foi ao hospital. Antes de sair, falou "Deixem as luzes acesas, eu volto logo". Morreu naquela noite, em 8 de dezembro de 1990. A peça estreiou no mês seguinte, em duas cidades diferentes. Em Toulouse, no dia 10. E em Paris, no dia 21 de janeiro de 1991, dia em que eu nasci.
É talvez leviano dar importância a esse tipo de coisa. É talvez prepotente me colocar como herdeiro filosófico de Kantor. Mas uma vez encontrada a coincidência, que fazer? Acho mais interessante utilizá-la, pelo menos até que se esgote, ou que esgote a mim. Sinceramente, não tenho nada muito mais concreto que isso. Kantor, em verdade, me ajuda a concretizar muito do que, em minha cabeça, eu acreditava ser apenas fumaça. Me fica esse assombroso caminho, que até aqui era vislumbrado apenas pelos duvidosos faróis de meus próprios devaneios esquizofrênicos, e que repentinamente me aparece como que iluminado por postes fantasmagóricos, cuja luz pálida é apenas suficiente pra fazer acreditar em sua existência.
É bem verdade que boa parte de Kantor se baseia na idéia de quebrar com o convencional, com o estabelecido. Mas talvez isso indique apenas que o primeiro passo há de ser a quebra das crises finais enunciadas pelo seu teatro, em Hoje é Meu Aniversário, que em tanto me lembram as crises encontradas por mim, não no fim, mas no próprio começo de minha caminhada.
Afundo-me, a partir daqui, nos pensamentos de Kantor, que desde já começam a se confundir com os meus, que já foram os de Borges, os de Gaiman, os de Picasso, os de Fellini, e sabe-se lá de quantos outros. Agora, espero, começa finalmente a jornada rumo à manifestação concreta. Àquele espaço vivo e dinâmico que é o palco, ambiente ideal à exploração dos espaços internos e imateriais do homem e do universo, que ainda precisam ser mostrados, a nós mesmos, como reais.
Museu dos que Já Foram
Há 2 anos
Nenhum comentário:
Postar um comentário