14/08/2010

As cartas marcadas

E no final não era isso que queria? Não era esse silêncio, essa saudade, esse quarto cheio de nada?

Não ter ninguém pra seguir. Ninguém a quem deixar de contar as coisas. Ninguém sobre quem deixar pesar as esperanças não declaradas.

Não mais ter que ouvir o baque surdo dos meus sonhos vãos quebrando. Não mais ter que lidar com esse vácuo inexprimível das possibilidades alheias, que só eu vi, e só eu pude deixar passar.

Não esperar mais que o amanhã possa ser um dia nosso. Não mais achar que hoje somos juntos algo a mais, algo belo, além da vida.

Poder achar em mim um eu comigo mesmo. Poder perguntar o que eu quero construir, e não mais procurar quem já o tenha construído por mim. Ter talvez a coragem de assumir a autoria dos meus próprios sonhos.

Ter a certeza de que a força necessária há de ser achada no espelho. Não por convicção. Não por doutrina. Mas só por questão de harmonia. Quando um lado se põe tanto em evidência, às vezes faz crer que o outro não existe mais.

E nessa hora se faz bem ao quebrar os velhos frascos, pra tentar lembrar quais perfumes certa vez lhes deram vida, antes de mortos, empalhados, enfeitarem as prateleiras, as cátedras, as molduras, as memórias.

Não se preocupe. O que eu deixo não é real. Não há de ser. Não abandono você, nem nenhum de vocês. Mas os fantasmas, aos quais dei máscaras que roubei dos rostos teus.

Faço pra poder dar a alguém de novo um rosto meu inteiro. Que não seja roubado aos poucos, nem espelhe nos olhos que sonham. Mas um rosto que possa sonhar por si só, e sorrir e contar, e às vezes também esquecer do que viu.

Esquecer, esquecer. Já sei que nada se esquece, tudo se transforma. Então porque tamanha resistência pra deixar descer ao chão mais esse castelo de cartas marcadas? Chega dele, não?

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