15/03/2010

Retrato de uma relação indireta

De manhã ele lia o jornal enquanto esperava o café; as sombrancelhas franzidas, inevitavelmente.

Era como se o dia só começasse mesmo quando ele lembrava de se preocupar. Isso costumava acontecer logo que tocava o despertador; às vezes uns poucos segundos antes. Eram tantas as preocupações, na empresa, em casa, na vida, no futuro. O jornal servia pra lembrar que além de tudo isso, também havia com o que se preocupar do outro lado do mundo: a guerra, o petróleo e o presidente maluco de alguma ditadura no meio de um continente enorme, que ele sabia existir, mas nunca tinha visto com os próprios olhos. Acho inclusive que morreu sem ver.

Vinha então a preta lhe servir o café, amargo, que era pra lembrar que o mundo é o que é. E com a preta vinha o sorriso branco da preta, que às vezes o fazia pensar na vida.

"A sua sorte" dizia ele "é que seus problemas são todos reais." enquanto a preta lavava a louça e ouvia, sorrindo. "É o barraco que alaga, o dinheiro que falta, o preço do pão." e tomava um gole do café. "São essas coisas da vida. Daí você sorri, porque sabe que a vida é a vida."

Uma pausa, uma olhada pra página do jornal, e as sombrancelhas, que às vezes, num momento de distração, relaxavam um pouquinho, novamente em inflexão total.

"A gente que se perde em preocupações acaba tendo que se preocupar com tudo. Começa tentando entender o mundo, e às vezes esquece da vida. Não vai achar que eu não me importo com você, é justamente o contrário. Tem muita coisa errada no mundo sabe, então alguém tem que tentar entender, pra poder de repente te dar uma casa melhor, colocar todo aquele povo da tua favela em casa própria, acabar com essa pobreza, com essa guerra, com essa roubalheira da política."

E a preta, a sorrir, fechava a água da torneira, e ia pegar a xícara vazia em cima da mesa.

"A gente se perde em idéias, mas é porque sabe que ta tentando resolver tudo. É pra você poder viver assim despreocupada, lidando com seus problemas todo dia, e poder sorrir porque sabe que tem gente pensando pra resolver o resto todo."

Vendo de novo o sorriso branco da preta ele dizia "Você entende né?"

E a preta terminava de lavar a xícara, dava um até logo sincero, alegre até, e ia pegar a roupa suja pra colocar na máquina.

Antes de levantar ele sentia um incômodo que já não lhe era estranho, fechava o jornal, e ia trabalhar pensando em talvez parar de pensar.

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